O caráter dos filhos: nem sempre a culpa é dos pais
Todos temos dúvidas a respeito da criação que oferecemos aos nossos filhos. Isso é normal, pois existem diversos tipos de informação atualmente e cada criança e tipo de criação é única. Buscamos uma forma perfeita de educar nossos pequenos e duvidamos constantemente das nossas escolhas: nos perguntamos se somos permissivos demais, se somos ausentes e milhões de outros questionamentos sem resposta. No entanto, precisamos ter algo muito importante em mente: nem sempre a culpa é dos pais.
Todas essas perguntas inspiraram o casal de antropólogos Robert e Sarah LeVine a publicar o livro Do Parents Matter? – Why Japanese Babies Sleep Soundly, Mexican Siblings Don’t Fight, and American Families Should Just Relax (Os Pais Importam? – Por que Bebês Japoneses Dormem Profundamente, Irmãos Mexicanos não Brigam e Famílias Americanas Precisam Relaxar, em tradução livre). O livro foi lançado no fim do ano passado, sendo uma obra conjunta de ambos.
A obra, que ainda não tem tradução para o português, é resultado de décadas de estudo dos profissionais, pois Robert é professor e Sarah é pesquisadora da Universidade americana de Harvard. Eles investigaram as diferentes formas de criar os filhos ao redor do mundo. Os antropólogos visitaram quatro continentes, passando por países como México, Quênia, Índia e Venezuela.
“Dedicamos nossa vida a esse trabalho. E descobrimos que há muita novidade para contar aos pais”, comenta Robert em uma entrevista concedia à revista Crescer.
Nas 193 páginas do livro, os pesquisadores fazem um relato do que observaram em suas viagens e analisam algumas experiências pessoais, pois além de pais eles também são avós.
Nem sempre a culpa é dos pais
O estilo de criação brasileiro é bastante influenciado pelo ponto de vista ocidental, de forma que a responsabilidade do cuidado recai sobre os pais (principalmente a mãe). No entanto, o livro relata que em outros locais, como algumas sociedades agrárias africanas, as mulheres costumam amamentar crianças que não são seus filhos biológicos, o que para nós pode soar bastante estranho.
No sudeste asiático e na porção indígena da América do Norte, por outro lado, o cuidado dos bebês é responsabilidade dos irmãos entre 8 e 9 anos de idade. No Japão, os filhos dormem com os pais até os 10 anos. E o mais surpreendente: em algumas ilhas do Pacífico, as crianças podem ser “adotadas” por outra pessoa da comunidade, caso se identifiquem mais com ela que com os próprios pais.
Todas as crianças dos locais e costumes mencionados crescem e se desenvolvem normalmente, sem traumas ou dificuldades de relacionamento com a comunidade. Os pequenos se adaptam ao modo como são criados e entendem seu contexto e ambiente.
“As crianças são mais resilientes do que os especialistas acreditam”, diz Robert. Mais do que isso: elas aprendem e crescem com cada experiência.
A influência da cultura: nem sempre a culpa é dos pais
Obviamente o objetivo do livro não é ensinar aos pais como eles devem ou não devem educar seus filhos, ou incentivar a adoção de uma prática que não seja aceita em sua cultura. A intenção é justamente o contrário: romper com a crença de que os pais são os principais responsáveis pelo comportamento e pela personalidade dos filhos.
O livro tem como ideia principal o fato de que existem inúmeras formas de criar os filhos e uma não é mais correta que a outra. Com isso, os pais podem se sentir menos culpados por suas escolhas e ter menos medo ao cuidar dos filhos.
“Cada sociedade tem seus próprios modelos, que também condizem com o momento vivido. No entanto, ao conhecer exemplos de outras partes do mundo, não apenas expandimos nossa perspectiva sobre o que é ser um bom pai, como possivelmente alcançamos uma compreensão mais sofisticada sobre a criação dos filhos”, explica Robert.
No México rural, por exemplo, as famílias são bastante numerosas e unidas, de forma que os laços de afeto e solidariedade entre os irmãos são bastante profundos. Já as crianças yoruba, na Nigéria, convivem diariamente em espaços comuns desde cedo, de forma que crescem com uma grande capacidade de socialização.
As crianças japonesas, mesmo dormindo com os pais por boa parte da infância, são independentes e aprendem a ter responsabilidade sobre as próprias coisas, mostrando bastante maturidade. E se está tudo bem com elas, por que não estaria com os nossos filhos?
O fato é que a psiquiatria ocidental em relação ao desenvolvimento infantil se difundiu bastante em nossa sociedade. Com isso, temos a impressão de que as decisões dos pais podem traumatizar as crianças e afetar seu desenvolvimento.
“Os pais são responsabilizados por questões que, no fundo, não dependem inteiramente deles”, diz Robert.
O resultado disso são pais extremamente culpados e frustrados, pois têm expectativas inalcançáveis. “É claro que o pai e a mãe são importantes, mas não tanto quanto as pessoas costumam pensar. Na verdade, as crianças recebem um número enorme de influências – de sua própria personalidade, da comunidade, do ambiente. Os pais são apenas uma parte disso”, comenta Sarah.
Esse é mais um motivo para rompermos com a ideia de que tudo é culpa dos pais. Infelizmente, essa ideia vem sendo difundida por psicólogos, pediatras e até mesmo pelas próprias crianças.
Uma observação importante do impacto da dinâmica familiar e sua influência cultural foi discutida por Sarah através de sua experiência em visita ao norte da Nigéria com famílias do povo hausa-fulani. Essa sociedade tem um código moral bastante restrito chamado kunya, que proíbe brincadeiras, conversas e até o contato visual entre as mães e seus filhos mais velhos.
As crianças podem até ser enviadas a outras famílias, chegando a ficar anos sem contato materno. “A falta da mãe é suprida por todas as outras mulheres da comunidade, como tias e avós. Assim, elas nunca ficavam desamparadas”, ela comenta.
No entanto, quando Sarah trabalhou como terapeuta infantil em Chicago, nos Estados Unidos, auxiliando crianças ocidentais cujos pais haviam sobrevivido aos campos de concentração na Segunda Guerra Mundial, a experiência foi exatamente o contrário. Devido ao estresse e ao trauma provocados pela guerra, esses pais não eram capazes de criar vínculos com os filhos, que se sentiam completamente perdidos.
A teoria do desapego
Para muitos pais não é fácil se acostumar à ideia de que eles não são os únicos responsáveis pelo desenvolvimento dos filhos. De fato, estamos bastante habituados à teoria da “criação com apego”, da década de 1960. A psiquiatra infantil Bowlby-Ainsworth, sua criadora, argumentava que bebês com mães “insensíveis às suas necessidades” desenvolveriam um apego inseguro e uma certa instabilidade emocional.
De acordo com Sarah e Robert, esse conceito não faz sentido. “Uma criança constrói vínculos importantes com várias outras pessoas, como cuidadores e parentes, não sendo algo restrito à mãe. Eu e meus colegas, que estudamos os cruzamentos entre culturas, não acreditamos nisso. Para nós, não é científico”.
No entanto, os antropólogos defendem o compartilhamento da cama com os filhos, que é uma prática comum na teoria do apego. “Não são apenas tribos da África ou da Ásia que dormem com seus filhos. Os seres humanos têm feito isso no mundo todo pelos últimos 2 mil anos”, comenta Robert. De acordo com o casal, boa parte do cansaço dos pais durante os primeiros meses do bebê se deve a esse arranjo fisicamente distante entre mãe e bebê.
O livro nos inspira a conhecer outras realidades sem julgamentos, entendendo que esses modelos de criação funcionam bem em seu próprio contexto. Com isso, podemos desenvolver um olhar mais tolerante em relação às nossas próprias decisões. Pais e mães devem sim dar o seu melhor, mas é importante ter em mente que as crianças também recebem influências externas.
Uma criação com mais liberdade
Entender e aceitar que não temos o controle integral da criação e do desenvolvimento dos nossos filhos pode ser um desafio. “Quando se vive em uma sociedade em que todos creem naquele mesmo paradigma, é difícil acreditar em algo diferente”, diz Sarah.
Enquanto na Ásia crianças de 5 anos cuidam dos irmãos mais novos, no Brasil, por exemplo, seria um caso de negligência parental, com consequências penais para os pais, além de julgamentos e acusações de outras pessoas.
Mas como devemos agir? De acordo com os antropólogos, o papel dos pais está mais próximo de um incentivador, e não de responsável completo pelo desenvolvimento da criança.
Obviamente os bebês precisam de mais cuidados, e isso é uma obrigação por um tempo. Mas ao crescerem, as crianças devem ser estimuladas a escolher e lutar por seus objetivos, e não seguir um caminho trilhado pelos pais. Além disso, elas devem aprender a lidar com as frustrações da vida e com as consequências que cada escolha acarreta. Nem sempre a culpa é dos pais se elas têm alguma dificuldade nesse sentido.
“Entender que temos apenas uma quantidade de opções limitada para ajudar nossos filhos é, de certa forma, um alívio. Ao nos colocar no papel de mentores, deixamos de assumir que a criança se tornará um reflexo daquilo que somos ou que esperamos que ela se torne”, afirma Robert.
O conselho do casal para pais ocidentais é o seguinte: relaxe! Você pode fazer uma viagem sem culpa que os seus filhos não ficarão traumatizados pelo resto da vida. Além disso, não é porque você consola rapidamente o bebê quando ele chora que estará criando uma criança mimada.
Não existe fórmula perfeita pra educar um filho. Ele estará sujeito a estímulos externos e deverá pensar e agir por conta própria, mas sempre contará com seu apoio e amor.